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Qual é o poder da crença?

Na semana que passou, conversei com uma mãe que me disse o seguinte:
“Meu filho está doente porque quer comer um sorvete e eu não encontro para comprar”.

Ela contou que o filho, de dez anos de idade, havia visto a propaganda desse sorvete na televisão e isso teria despertado nele tamanha vontade de consumir a guloseima que ele, agora, apresentava sintomas de dor na barriga e febre.

Ora, do ponto de vista médico, sabemos que dor é um sintoma subjetivo, não há como comprovar ou mensurar, mas a febre é um sinal objetivo, fácil de medir, basta usar um termômetro. Sabe-se também, no meio médico, que as crianças tendem a referir dor na barriga quando estão em situação de desconforto ou de estresse. Geralmente essa dor na barriga não é acompanhada de diarreia ou vômitos, dois sinais objetivos. Entretanto, enjoo e inapetência podem, com frequência, compor o quadro. Quando se pedem exames complementares como ultrassonografia, endoscopia, exame de fezes, nada de anormal é constatado. Entre os fatores desencadeantes mais comuns estão a ausência repentina, inesperada ou prolongada de um dos pais, conflitos no ambiente familiar, problemas na escola ou no círculo de amigos da criança. Esse quadro evolui de forma benigna e costuma desaparecer quando a situação estressante deixa de existir.

Perguntei à mãe da criança sobre possíveis causas psicológicas e ela declarou com firmeza que nada havia de diferente ou possivelmente estressante na vida da criança que pudesse ser a causa da dor na barriga. Só podia ser o sorvete.

Perguntei sobre a febre, se ela havia aferido a febre com termômetro. Ela foi muito clara:
“Sim, medi a temperatura dele várias vezes e deu 37,5°C, 38°C e até 38,5°C. A febre vai e volta. Às vezes ela só passa se eu dou remédio”.

Argumento que uma febre é sempre um sinal importante e deve ser investigado. Recomendo que leve seu filho a um serviço médico para ser avaliado. Ela não se deixa convencer, diz que o filho já esteve em consulta recentemente, exames foram pedidos e estão normais. A criança está perfeitamente sadia. O problema é o sorvete.

De sua parte, ela explica que vivem no sítio, são pessoas simples, de poucos recursos mas “nunca faltou o de comer”. Diz, com orgulho, que nunca deixaram a criança “passar vontade”. Parece querer dizer: “Somos bons pais, bons provedores, somos responsáveis, estamos conscientes de nossos deveres para com nossos filhos!”

“Mas agora, dessa vez,” ela acrescenta, “não foi possível fazer a vontade do menino. Já fui à cidade mais perto, procurei em todas as padarias e não consegui encontrar o sorvete para comprar. Então, ele ficou doente”.

Tento arrazoar de outra forma, dizendo que a criança tem dez anos e já possui entendimento suficiente para lidar com situações de frustração. Ela concorda, diz que o filho é uma criança calma, inteligente, sabe perfeitamente aceitar que algumas coisas não são possíveis mas isso em nada resolve o problema. O fato é que ele adoeceu porque está passando vontade de comer um sorvete que ela não consegue encontrar para comprar. E tem mais, toda vez que o filho assiste à propaganda, o desejo volta e ele apresenta novamente os mesmos sintomas.

A conversa terminou sem que se chegasse a uma solução. De um lado, a crença da mãe e, por conseguinte, da criança, que “passar vontade de comer” alguma coisa leva ao adoecimento. De outro lado, o poder de uma mídia televisiva que invade todos os lares e todas as cabeças, despertando vontades irresistíveis.

Uma amiga mais tarde me contou que a propaganda do sorvete é muito bem feita e está ligada a um super-herói que tem forte apelo emocional nas crianças.

Dois dias depois, soube que uma colega médica atendeu um caso muito semelhante. Desta feita, a criança tinha dois anos. Fiquei estupefata.

O que pensar disso? Até que ponto nossas crenças produzem sintomas físicos? Até que ponto adoecemos, física e mentalmente, porque nossos desejos não são satisfeitos?

Autor: Karen Câmara

Natthalia Paccola

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  • É claro que isso mereceria uma boa investigação psicológica, cujas causas podem ser as mais diversas (melhores detalhes deixaria para melhores entendedores do que eu). Mas o meu ponto é que essa criança possa ter se identificado inconsientemente, de forma negativa, com algo que há na propaganda. Uma identificação muito particular que, à vista de outras pessoas, seria indiferente. Isso apenas ela e mais ninguém, poderia esclarecer, numa eventual análise... Se o meu ponto de vista estiver correto, essa febre voltará em outras ocasiões, por motivos igualmente "estranhos".

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Natthalia Paccola

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