Eu sei tudo de você?

Eu sei tudo de você. Assim resume-se a nova febre que acomete casais desconfiados, craques nas novas tecnologias.

Eu sei tudo de você: olho seu whatsapp, baixo seus e-mails, fuxico seu instagram, bisbilhoto seu facebook. E se der, gravo suas conversas e filmo os seus momentos.  Aliás, não controlo só você, mas também seus parceiros, seus filhos, seus pais e seus amigos mais próximos.

Eu sei tudo de você e só sabendo tudo de você é que eu posso confiar e declarar meu amor. Chamo isto de transparência, posso aceitar descompassos, mas quero uma relação transparente, na qual tudo que você souber de você mesmo, eu também sei.

Eu sei tudo de você. Oh, quimera pós-moderna, ilusão dos inseguros. Nada disto pessoinhas antenadas, nada de pensar que sua bisbilhotice vai lhes trazer maior conhecimento a respeito de quem quer que seja. Bons tempos aqueles nos quais as pessoas se envergonhavam de abrir uma gaveta alheia e quando bolsa de mulher e paletó de homem eram intocáveis. Agora, com a desculpa rala de ver uma foto ou de que seu celular estava tocando, os sherloquinhos conectados se permitem a incursões invasivas e indecentes.

Pensam que se a tecnologia está aí então é para ser usada, quando a ética reza o contrário: a existência da possibilidade não autoriza o seu uso.

Ademais, há um erro básico em imaginar que se conhece uma pessoa por colher informações supostamente secretas. Nenhum ser humano é traduzível em palavras, o mais essencial de nós mesmos não tem palavras, nem nunca terá.  Nem mesmo a própria pessoa sabe de si, é o que todos os dias verifico nos analisandos. A psicanálise melhora esse conhecimento, mas não tem intenção de extenuá-lo. Aliás, se uma parte do tratamento visa o se conhecer melhor, outra, talvez a mais importante, visa dar condições à pessoa decidir sobre o que não conhece e que nunca conhecerá de si e dos outros.

Espera uma revisão, em nossos tempos, o conceito de traição e de fidelidade. Não nos basta mais nos aferrarmos à velha divisão simplista e maniqueísta, do branco e do preto, do fiel e do infiel. O amor, especialmente na pós-modernidade, não se expressa em nenhuma moral de costumes. Amar é bem mais complexo do que o claro ou escuro. São as nuances que melhor rimam com os romances.

Alguém poderia perguntar por que nestes tempos pós-modernos, continuamos a presenciar crises de ciúmes apaixonadas. Embora pareça contraditório, não é. Exatamente porque vivemos uma época múltipla e flexível é que os ciúmes se acerbam como uma tentativa – falsa, sem dúvida – de acalmar a angústia da escolha.

Voltando, pesquisa recente afirma que 40% dos casos de traição na Itália foram provocados pelo whatsapp. Conclusão: jogar o celular pela janela? É claro que não. Só beneficiaria os fabricantes dos ditos cujos. Melhor jogar pela janela aquela pequeneza humana que não sabe diferenciar o que é da cena, com o que é da obscenidade. Explico: as pessoas acham que além da cena está escondida uma verdade maior, A Verdade maiúscula. Ledo engano, um dos sentidos da palavra “obsceno” é exatamente “além da cena”. Assim, ir além da cena, do que está ali, visível, querer escarafunchar além, para ter mais segurança – como dizem – não trás nenhuma nova verdade. É simplesmente obsceno.

Autor: Jorge Forbes

Fonte: Revista Istoé, fevereiro 2015

Natthalia Paccola

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