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A cor da ausência

O entardecer é o desembocar de todas as ausências.
[Marilene Felinto]

Quem imaginaria que aquela moça linda, olhos azuis, louros cabelos pudesse esconder lavas de incêndios de dor e angústia? Quem poderia supor que o azul dos olhos não favorecesse a visão da vida, a cor da vida? E que o azul fracassasse em oferecer um colorido qualquer, discreto que fosse, rala cor – não importa?

Rala cor que, pintando os recantos onde se pudesse caminhar lentamente, mesmo que fosse com uma dose de tristeza sempre presente. Mas nunca, nem discreta cor, nem cor pastel, nem pálidos tons.

Então pensarão: viam o cinza os tais olhos azuis? O negro de um temporal, de céu rasgado de nuvens de feriado chuvoso?

Tão distante do colorido da vida, como diria Winnicott: nem bolhas de sabão, nem arco-íris. Não teria o pai jogado-a para o alto, oferecendo-lhe assim a experiência de júbilo? Mas, ao contrário, era o cair para sempre que a ameaçava. Não terá a mãe ido ao seu encontro, possibilitando-lhe a ilusão? Ilusão de que encontramos aquilo que criamos. Entretanto, longe da ilusão, era o inferno que habitava. Enganam-se os que pensam a cor do inferno negra ou cinza ou outros tons aproximados. Esse tipo de inferno que ela escavava dia a dia para do fundo sair, onde lascava as unhas arranhando o reboco e comia os restos como quem sofre de vermes – esse tipo de inferno tinha a cor da ausência.

Poderão pensar que é branca a cor da ausência. Não, a cor da ausência só ela tem: é uma cor que sofre, que não se nomeia, que não se aproxima de cor nenhuma jamais conhecida.

A cor da ausência vem do oco da pessoa, não das vísceras, não vermelho sangue de órgãos à mostra de corpo largado à mesa fria. O oco do corpo tem gosto de vazio – dos mais terríveis que se possa experimentar – porque assim fora exposto o ser quando ainda não estava lá. Assim o vazio ficara lá, no interior do ser, como um corpo estranho, alienígeno à natureza humana.

A cor da ausência faz o corpo dobrar-se sobre si mesmo, procurando onde habita o vazio: quem sabe no centro? Mas a ausência mora em lugar nenhum. Quem dobra o corpo em dois sofre de dor presente, de gritos mesmo que calados. É no corpo imóvel que a ausência dá seus sinais, no sorriso que nunca vem e, se vem, pouco dura ou mal se sustenta, nos olhos secos e vazios. Por mais lindos que sejam, por mais azuis.

O tsunami de agora veio se formando desde a infância – porque assim acontecem a maioria dos tsunamis e porque toda infância arrasta sóis e sombras. Algumas infâncias de rios turbulentos arrastam mais sombras – devo ressaltar. Não consigo supor uma infância em que a pessoa, ou melhor, o pequeno ser venha crescendo somente com suas forças. O entorno precisa estar lá, sustentando, evitando o ser perdido no espaço, exposto assustadoramente às leis da gravidade. Nesse início somos tão frágeis, sujeitos a fendas, fraturas, falhas relativas (aquelas que nos auxiliam a prosseguir) ou absolutas (aquelas que são capazes de nos fazer aproximar das agonias impensáveis). Nessas circunstâncias, quantos de nós não arrastarão infâncias sombrias, tsunamis adiados. Nem sempre a tristeza segue à mostra; muitas vezes o colapso – tsunami – estará oculto no correr de uma vida tediosa ou num rosto suave ou alegre ou eufórico ou bem sucedido. Mas o anúncio de todo tsunami – poucos sabem – é o recuar imponente do mar, a maré baixa promissora de águas cristalinas, oferecendo águas rasas de corais à mostra.

Entretanto, tanto recuar das águas, tanta generosidade é puro engano, e os que conhecem as artimanhas do mar saberão que ondas gigantescas virão, derrubando além das margens e engolindo as terras, poupando apenas os moradores das montanhas.

Não posso deixar de imaginar a mente de atormentada com todas as turbulências, enormes ondas às quais não sobrevive de tão ocupada de tsunamis. Um após o outro, com pausas e promessas de dias idílicos e a volta de mais uma traição da natureza.

O longo recuar das águas veio da infância quando a menina retraía-se mais que concha, em estado de silêncio que depois saberíamos de águas ameaçadoras. Um retraimento que se traduzia como timidez ou retrato da boa moça, os moletons ou mais tarde as golas roulé escondendo o convulsionar da angústia abaixo das roupas. Anos e mais anos de submissão, de ficar à mercê dos adultos e de suas histórias que não estava preparada para ouvir. A mãe (como objeto externo) lhe aparece precocemente, fora do alcance de seu gesto em ânsia de criá-la. O gesto cai no vazio. A espontaneidade cede lugar à desesperança. Capitula para ser aceita. A mãe debruça-se sobre a filha. Ah! Não pensem que em estado de devoção absoluta – mas em olhar pedinte. Também tem olhos azuis a mãe de Ariadne e lhe pede socorro atormentadoramente. A mãe roubou seu sorriso.

Depois vieram os anos de rebeldia. Desastrada. Mas todo repúdio traz um tanto de desastre e a recusa de minha jovem paciente não poderia vir mansa. Colocar abaixo anos de submissão. Quebrar copos, xícaras, lançar ao espaço sua baba ardente de ódio porque fora oferecida em sacrifício à loucura dos pais… Porque a loucura dos pais deita-se como um manto ardente sobre o corpo jovem e não é nada fácil ser feliz ou livrar-se de sua própria loucura se os pais permanecem em seu cenário de insanidade… Mas viera todo esforço para desfazer-se da submissão: o desfazer do encobrir das roupas, da sexualidade guardada, o mostrar em desespero o corpo. Porque sempre oscilaste e se tentassem dar um nome à tua imprecisão e se tu mesmo não suportasses, com razão, tanta rebelião; era a busca de um mar confiável que procuravas, de uma terra estável capaz de sossegar teus pés inquietos. No olho do furacão, entre a tristeza e o desvario, a calmaria e o mar revolto, mora a busca de equilíbrio. Sempre me falaste da necessidade de teu equilíbrio:

Numa disciplina constante procuro a lei da
liberdade medindo o equilíbrio dos meus passos.
Mas as coisas têm mascaras e véus com que
enganam, e, quando em um momento espantada
me esqueço, a força perversa das coisas ata-me
os braços e atira-me, prisioneira de ninguém
mas só de laços, para o vazio horror das voltas
do caminho.
[Sophia de Mello Breyner Andresen]

Foi numa foto de Ariadne pequena que eu vi confirmadas sua beleza e a tristeza de seus olhos. Atravessara a infância ouvindo as dores da mãe, tal qual um bebê sábio ferencziano – dores em função de um casamento atormentado com um marido enlouquecido. Ariadne fazia par com a mãe, depositária de seus lamentos. Quando a separação dos pais parecia prestes a acontecer, o casal voltava a juntar-se. E Ariadne retornava à sua solidão sem nome. Nunca a chamaram pelo nome? Nunca lhe chamaram “linda!”? Ficava ali, rosto suspenso, despido e permeável. Ali lhe faltara um olhar que a devolvesse a si mesma. Diga-me: em que espelho perdeste tua face?

Osmose lenta…
Rosto desfeito,
Rosto sem recusa onde nada se defende,
Rosto que se dá na angústia do pedido,
Rosto que as vozes atravessam…
[Sophia de Mello Breyner Andresen]

Ficara ali, rosto à espera, boca aberta à disposição do próximo pedido materno – era assim que a troca se dava, não pelo olhar da mãe que a devolvesse como pessoa. Não pela voz do pai que a chamasse com a ternura dos pais dedicados comuns. Sua boca aberta carente de amamentar-se, com o tumulto que a mãe lhe oferecia antes que o casal se voltasse ao próprio convívio e deixasse à margem seu rosto esquecido.

Não era a mãe que se perdia; mas o tormento com que era alimentada. O pai louco arrancava a mãe para sua rede de cacos e roubava da filha o seu olhar. Vozes de angústia recebia a pequena, choros de imensa tristeza testemunhava, encostada que ficava no quarto trancado da mãe em depressão, desesperada com as inúmeras tentativas de suicídio. Sem contar o caos que o casal impunha, percorrendo com suas brigas infernais os cômodos da casa. E o pai louco enredado por suas graves oscilações de humor e por seus livros de mente brilhante.

Ariadne me contava sobre sua sensação de nunca ter sido vista – nem bebê, nem criança, nem jovem. Como diz Winnicott: “O que vê o bebê quando olha para o rosto da mãe? Em outros termos, a mãe está olhando para o bebê e aquilo com o que ela se parece se acha relacionado com o que ela vê ali… Entretanto, isso não é tão evidente assim – e se o bebê cuja mãe reflete o próprio humor dela ou, pior ainda, a rigidez de suas próprias defesas. Em tal caso, o que é que o bebê vê?” [1]. Nesses casos os bebês não se vêem a si mesmos. O rosto da mãe não constitui um espelho. A capacidade criativa começa a atrofiar-se e a percepção toma o lugar da apercepção. Isto se estende em termos da criança e da família.

Continuando com Bollas: “E se o status essencial deste objeto primário estiver calcado menos em seu caráter especular do que no tumulto emocional que ocorre no self quando se o tem em mente”? [2] Nesses casos, o objeto primário não se apresenta como figurativo, mas como a própria disrupção – representado como tormento emocional. O objeto apresenta-se temido, entretanto, inevitavelmente desejado, já que permanece sendo o objeto primário.

Ariadne, sempre perturbada pelo ambiente, alimentada pelos esvaziamentos/ evacuações dentro dela – segundo Bollas, experimentando o objeto primário como um repetido efeito dentro do self, não como um fenômeno especular a ser introjetado como parte do desenvolvimento normal. Quando alguma emoção insinua a presença deste objeto, o borderline é sempre tentado a encontrá-lo intensificando um objeto comum, transformando-o numa experiência perturbadora.

Tal efeito maternal não informa o self de uma maneira alimentadora, que deveria funcionar inconscientemente comunicando o próprio idioma através de seu discreto efeito no inconsciente do outro. Destituído dos essenciais e acumulativos desenhos do desejo maternal que deveriam formatar e estruturar as necessidades do bebê numa sensibilidade com um futuro, o resultado é de puro caos.

Colapso

Eu só quero silêncio neste porto
Do mar vermelho, do mar morto
Perdida, balouçar
No ritmo das águas cheias
Quero ficar sozinha neste espanto
Dum tempo que perdeu a sua forma
Quero ficar sozinha nesta tarde
Em que as árvores verdes me abandonam
[Sophia de Mello Breyner Andresen]

Se antes era o recolher das águas, como já dissera antes, o primeiro tsunami aconteceu – imprevisível, nunca anunciável.

Numa viagem, num encontro efêmero de uma semana, engravida de um rapaz que nunca conhecera. A gravidez transforma o mar morto onde parecera buscar silêncio e porto num oceano de águas cheias e tenebrosas. O pai enfurecido quer o aborto. Ariadne até hoje, com filho de 13 anos, não entende – por que teve? Por que não abortou? A gravidez – escolha incompreensível para ela – fora vivida como inferno: o pai maldizendo a filha, a mãe ao lado do pai. Não há palavras para descrever o castigo imposto pelo pai e pela pequena cidade interiorana. Quando nasce o bebê, o quer de volta à barriga; não por amor à mesma; mas pela visão do filho não desejado. Outro inferno se inicia: “como não sabia quão terrível era ter um filho?!” Os primeiros meses sem ajuda da mãe. Ainda hoje afirma: “ele é um peso para mim. Jamais deveria tê-lo tido.” Desejar colocar para dentro aquele pedaço de vida – extensão sua. O que lhe oferecer? Pedaço de vida, que denuncia movimento, mas onde vê pura ausência e maldição.

Sozinha, sem a anuência do pai da criança, quase adolescente – não tem um filho para criar, mas um peso a carregar.

É quando o menino completa dois ou três anos que conheço Ariadne. Finalizara a faculdade e voltara para a cidade de origem para trabalhar com o pai na mesma profissão. Saíra de uma depressão que julgara branda, mas chegava aflita – com a criança, o pai, a cidade. Chega a mim uma moça séria, tímida, sempre com golas roulé, angustiada em relação a como seria trabalhar com o pai. Foi um caminho que trilhamos juntas: sua paixão por aquele, sua gradativa aproximação, a busca de reconhecimento e aceitação. A relação com o pai sempre distante agora ganhava intimidade.

Simultaneamente ao abandono das golas roulé, é tempo de desvario, o mergulho nas baladas, o uso exagerado de álcool, a amnésia alcoólica. O filho impedindo que caísse mais na noite, que vivesse o que achava que não vivera, que transasse com tantos, que sofresse por outros.

Nessa fase também tinha muita vergonha de ser mãe solteira, de comparecer às festinhas na escola, de nunca encontrar um namorado que prometesse abrigo para si e para o filho.

Nas baladas saía à busca do homem aquele – porto e fonte de alegria – que a salvasse da solidão e da perdição. Entretanto, apenas ressaca, cama vazia, sonhos desfeitos. No trabalho, enorme exigência em proceder com perfeição, o tormento de se sentir sufocada pelo número de horas e pela necessidade de se mostrar boa profissional.

Nessa fase – há sete anos – não senti o não-ser de Ariadne que hoje vejo tão presente, sua ausência de si mesma, o rosto suspenso, despido e permeável. Havia uma espécie de consistência – podia tocá-la, senti-la, ela poderia estar mesmo apenas cheia de ar, mas parecia que existia.

Depois de algumas paixões não correspondidas, relacionamentos desfeitos, Ariadne encontra um companheiro aparentemente tranqüilo, bonito, doce, apaixonado. Em alguns meses estão morando juntos. Em alguns meses o inferno começa. Ele quieto, passivo, recebe as brigas, xingamentos, insatisfação de sua parceira. Qualquer desatenção não era uma gota d’água – era uma pororoca, um tsunami, catástrofe, desastre. O negativo surgira. Era ali no tormento e/ou no negativo que Ariadne existia. As qualidades positivas do marido não se apresentavam, era – como dizia Winnicott – o negativo dele o mais real que ela possuía. Nas palavras de Green: ”tudo o que se refere a uma falta ou lacuna: ausência de memória, ausência na mente, ausência de contato, ausência de sentir-se vivo – todas estas ausências podem ser condensadas na idéia de falta ou lacuna. Mas essa falta ou lacuna, em vez de se referir a um simples vácuo ou a algo que está faltando, torna-se o substrato para o que é real” [3]. Segundo Winnicott: “a coisa real é que não se encontra ali” [4].

Com a convivência com o companheiro surge com todas as forças o valor do negativo e do tormento no existir de Ariadne. Falta, logo existo. Se existe o inferno, logo existo.

Mais ou menos nesta ocasião percebi sua oscilação de humor, a experiência de qualquer afeto como irritação. Era visível no trabalho e na relação com o companheiro. Decepcionada ante qualquer suposta desatenção ou outros sentimentos, surgem ira e fúria. Segundo Bollas:

Pensemos em como as pessoas borderline desmoronam em pedaços. Elas parecem psiquicamente propensas a acidentes, ainda que lançadas ao tormento pela aparente falta de sensibilidade do outro. E se, para elas, o objeto primário operar através deste tipo de acidente? E se, por qualquer motivo, o bebê ou a criança experimentou a mãe como um movimento disruptivo, posteriormente apenas reconhecível como uma transformação negativa do self? Um acidente na substância? Se for assim, o objeto de apego é o rastro emocional profundamente perturbado do outro, que abarca o terror, a raiva e ódio destrutivos despertados no self borderline; uma angústia persecutória que, além disso, liga o self e seu objeto efetivo no momento através de um combate psiquicamente indistinguível de forças negativas. [5]

A essa altura, as depressões se repetiam, com a fúria completando a paisagem. Os tormentos eram relacionados ao trabalho, aos estudos e especialmente em relação ao companheiro. O mundo era mau, eles (os perseguidores) proliferavam: rodízio de inimigos. É claro que eu entrava na roda desse mundo cruel, também volta e meia era um daqueles que a abandonavam, que a torturavam com sua incompreensão e ódio. Volta e meia eu entrava na roda e precisava sobreviver. Precisava estar lá com meu corpo presente, recebendo seu corpo de ódio; nunca meia volta – precisava estar lá. Também neste redemoinho de angústia e perseguição, quantas vezes eu não via entrada – quantas vezes a verdade de que o mundo não é tão mau, que o mundo também é bom precisaria ser enunciada de forma tal que a derrubada do edifício de ira e de olhos sombrios que a sustentava não a conduzisse ao chão, ao pó, revelando seus falsos alicerces de areia do mar. Porque estar assim numa roda de perseguição deixa o corpo à mercê da solidão – corpo que não oferece saída, e o outro (eu) não vê/vejo entrada.

Ódio

Quando percebi que Ariadne se sustentava em torno do ódio e em cada momento escolhia um inimigo, pensei que estava diante de uma subjetividade paranóica.

O ódio tão central em sua vida deveria ter um sentido.

Infância e adolescência de Ariadne: pais em brigas intensas, filha parceira da mãe e fruto de uma relação de ódio, percepção de um casal que se une através do desprazer.

Iniciando com este breve resumo dos primeiros anos de vida (e na verdade esta situação de estar no meio das brigas violentas dos pais permanece) foi possível compreender a relação de persecutoriedade e de ódio de Ariadne com a vida e com os outros.

Segundo Aulagnier, na paranóia, a questão do casal parental é fundamental na problemática do paciente. As teorias sexuais infantis, comuns a todos, são idéias em que a criança busca e dá respostas sobre suas origens, sobre o prazer ou desprazer vividos pelo casal parental quando foi concebida. Toda teoria sexual é uma teoria sobre o nascimento, que responde à questão sobre a origem do corpo e sobre a questão das origens [6].

Remontamos a este tema porque, se a esquizofrenia se vincula à relação mãe e filho, na paranóia a problemática central refere-se ao casal parental.

Voltando às teorias sexuais infantis: é preciso que a cena primária seja percebida como fonte de prazer, mesmo que em alguns momentos como fonte de desprazer. Isto é o que deve aparecer na cena do real no caso dos casais normais.

Na paranóia, Aulagnier observou que na cena primária os dois representantes do casal eram preservados desde que unidos por uma relação de conflito e ódio. Importante ressaltar que essa relação não é simples projeção – não é projeção nem percepção objetiva, mas percepção criativa, como afirma Minerbo [7]. Ou seja, a partir de fragmentos de realidade histórica, a percepção é amplificada.

Para o paranóico, o ódio é fundamental, “uma necessidade absoluta, tal qual o cimento sem o qual a construção desabaria como um castelo de cartas” [8]. Também será jogado ao abismo se o sistema lógico próprio ao sistema paranóide for recusado. Assim, o interlocutor é chamado a testemunhar, sem a menor possibilidade de duvidar, sob o risco de derrubar o edifício sobre o qual o paranóico se sustenta. É o que Aulagnier denomina de “exigência de comunicação”; assim como, enquanto a criança futura paranóica fora convocada a testemunhar a relação de conflito e ódio do casal parental, ela também precisa de testemunhas para confirmar que tem direitos e é rodeada de inimigos.

É importante detalharmos um pouco mais a relação do casal.

O conflito entre o casal, inclusive a disputa em relação à criança, é erotizado; a exclusão é de outra ordem. Não é o olhar que é excluído, mas ao contrário, a criança é convocada como testemunha e o fato de se tratar de uma criança é esquecido.

A criança também erotizará o que foi “escutado” e o ódio será concebido de maneira profunda. Outros sentimentos que poderiam ser relativizados, como cólera, zanga, rancor, etc., serão amplificados até ganharem a dimensão de ódio.

A relação do casal se encaminha de tal forma que se estabelecem como sinônimos: conflito e desejo, situação de casal e situação de ódio. E se a origem da existência de si próprio como do mundo remete ao estado de ódio, o sujeito só poderá se preservar vivo e só poderá preservar a existência do mundo na medida em que persista algo a odiar e alguém que o odeie.

O ódio está no centro de sua identidade; já que “no caso do delírio paranóico o fragmento de realidade é o ódio efetivamente percebido na cena primária. Esse ódio estará no centro de sua teoria sobre as origens e será o núcleo da subjetividade paranóica. De fato, o paranóico precisa de ódio para viver, e vive para dar sentido ao ódio. Uma vez constituído, seu sistema de pensamento não pode ter brechas sob pena de relançar o sujeito no não-sentido” [9].

A criança fica no meio tanto do ódio entre os pais como na disputa em relação a ela mesma. Um quer mostrar para a criança que o outro não presta. A mãe se apresenta como dedicada, sacrificada, mas como se isso soasse falso. O pai disputa de seu lado. Se no esquizofrênico o pai apresenta-se ausente, na paranóia, “o pai é o pai amado e idealizado da infância precoce, hiperpresente, excessivo, detentor da lei e do saber; ou é o pai violento, arbitrário, perseguidor, transformado em inimigo contra quem é preciso lutar” [10].

No caso de Ariadne o pai era idealizado em relação à sua inteligência brilhante e capacidade de saber, e perseguidor, em função de sua violência.

Adulta, ela percebe a loucura do pai e o desidealiza, mas não deixa de temê-lo; continuando, ora ao lado da mãe, ora também o odiando e ainda permanecendo no meio do casal em briga.

Alguns questionamentos podemos apresentar a partir do acima discutido:

•    como estabelecer com um parceiro uma relação amorosa e de prazer, se ela apenas conhece uma relação de ódio?
•    como aceitar o filho e preservá-lo de seu ódio se ela mesma se percebeu como fruto de pais unidos pelo desprazer?

O acidente

Entretanto, aquele que queria como salvador permanecia sendo seu companheiro. O ódio veio num crescente em relação a este último, onda engolidora, de ciúmes e persecutoriedade até que o grande acidente aconteceu.

Onde existia Ariadne – na tristeza ou na euforia? Em lugar algum – foi na oscilação que fui percebendo suas mãos tornando-se garras escavando a vida para ganhar contornos, consistências e poder finalmente dizer: “Eu sou”.

Não sei se erramos em não ver, ou se as percepções nos chegam aos poucos.

As pequenas euforias – arremedo de alegria – eram tentativas não apenas de sair da depressão, mas de se inventar alguém ou uma saída. Um carro caro, um anel de brilhante, uma festa de casamento, uma siliconada. Formas equivocadas de se inventar, obturar o vazio ou se presentear naquilo que a vida e a tristeza lhe roubaram?

Tais percepções me chegaram aos poucos – as oscilações, as fúrias indomáveis ocultas na timidez de outrora, a mente atormentada alimentando-se de suplícios, a falta como realidade mais verdadeira.

Se o mar me acompanhou em todo o relato é porque o recuar excessivo das ondas trouxe enfim o grande desastre. E era assim que Ariadne funcionava – entre tristeza e pequenas euforias e grandes tormentos dos quais se nutria com temor e paradoxalmente gratificação.

O grande desastre. A voz da mãe me diz ao telefone: “Ariadne está em coma no hospital”. Mais tarde me explica: brigara com o companheiro e saíra enlouquecida dirigindo seu carro. Um grande acidente e eu perplexa, espantada. A menina e seu desastre. Acompanho notícias e visito-a: já acordada, mas nem fala, apenas baba, com total descontrole motor, debatendo-se. Será que me reconhece? Não tem nome para meu susto: aquela ali não era a menina que eu conhecera. Quem estava ali destruída, enfurecida? O que restava de Ariadne e seu rosto desfeito, perdido.

Que amargos ventos de secura em si sepultam
E que as ondas do mar puríssimas lamentam?
[Sophia de Mello]

Pouco tempo se passou após o surpreendente restabelecimento de Ariadne. Estamos há um ano e meio após o acidente e sua voz, seu andar impreciso, o tremor dos gestos, a memória vacilante retornam ao normal para espanto e alívio de todos nós. Havia uma longa distância entre a destruída e a moça de agora com sua normalidade recém-conquistada.

Entretanto, a profunda tristeza e a falta de sentido de viver se arrastaram por todos esses meses. Retorna à casa da mãe, que se desdobra em cuidar da filha que sempre se sentira abandonada. Acompanho seu restabelecimento, fazendo as sessões na casa materna. Precisa descansar. Está tão cansada. Mas que direito terá de ficar em casa ociosa e sem trabalho? – pergunta-se angustiada.

Amnésia cercava o acidente até concluir – muito lentamente, sem recordação – que fora um ato deliberado de desespero. Entre fases de um pouco de tranqüilidade, o vazio foi escavando em volta, a falta de horizonte, a vontade de morrer. O vazio. O vazio.

Tristeza

Havia vários movimentos, se é que posso chamar assim. O tormento que era buscado e funcionava como alimento; o sentimento de injustiça, sentindo-se joguete e confusa no meio da guerra entre pai e mãe. Também ressalto o cuidado pela família; ela que fora terapeuta de mãe, continuava guardiã da família, compromissada com o encargo de curar seus membros enlouquecidos. Eu poderia citar Riviere, Pontalis, Searles: um interdito a aprisionava – como curar a si própria sem antes curar os seus?

A tristeza dominava. Como ser feliz se fora desde sempre acorrentada ao destino dos pais?

Raras tardes de domingo foram aquelas que o vazio não rondara, a melancolia determinando as cores do dia. Mesmo se o céu fosse do mais azul, o sol não podia lutar contra as trevas de dentro. A manhã-promessa acena como uma tela branca de um mundo vazio pulsante de possibilidades e idas, deslocamentos, rio de criação, mas que desemboca e morre, vai murchando até a quase-exata-hora do meio do dia quando o almoço se transforma num almoço de domingo. Não dava para ser um natural almoço de domingo? As tentativas de fincar os pés no presente acabam ali. Um furacão, um ralo gigante suga – o quão verdadeiros são os filmes de terror! – puxa para o passado; cheiro de cerca-viva. Devolva-me o tempo do agora, cerca morta! Rendida à casa do passado indestrutível, a casa e sua família, a casa e seus irmãos, onde uma placa avisa “nunca demolirás” – “protege cada canto, azulejo, precioso lastro do álbum de família, cada pingente do grandioso lustre de cristal”. Lido isto, dito isto; cai sem força numa fraqueza-tristeza em que nada faz sentido, nada é capaz de lhe despertar além da tarefa de fazer a vigília das horas, das horas que não passam. Num lago estancado de águas barrentas, descrente dos sonhos de lagos azuis ou praias desertas que ressuscitam, larga-se no lençol amarrotado da casa do presente.

Larga-se naquelas águas barrentas do tempo em que as ruas inundavam e as gentes olhavam da janela com menos temor e mais curiosidade, protegidas na casa. Agora uma cama, um lençol que supostamente protege, mas nenhuma paz ou prazer; ela que jamais conhecera a alegria.

Mas vai e vem no vão dos dedos, na areia do relógio-ampulheta, alegria é a melhor coisa que existe e ela se nomeia a que não desistirá. Mas em cada momento, “já era” – os olhos secos guardam sacos e sacos de lágrimas e tristeza.

Toda paixão mal-resolvida é algema no passado e um tanto equivocada, porque insensata. Se toda paixão mal-resolvida guarda a intenção secreta de paralisar o rio do tempo – o que falar da paixão pelos ancestrais, dos olhos que exultam pelo antigo, de um jeito que inunda o de dentro, penetra nos sonhos, torna-os ou não pesadelos? O pior é não mudar o script: o mesmo casarão, o mesmo pavor diante dos azulejos desrespeitados, da pedra portuguesa dessacralizada, arrancada sem pedido de permissão do quintal, onde pouco brincou. Como doeu, o patrimônio assim devastado, ela que havia se tornado a guardiã da casa da infância dos filhos de sua mãe. Agora estava só, ao léu.

Ausência

Encontrávamo-nos ao entardecer, quando desembocam todas as ausências. Ali presenciava sua aflição e tentava o quanto podia – será? – alcançar aquela ausência que lhe habitava o ser. De uma leveza de quem se ausenta da vida: nenhum sorriso, os pés soltos no ar. Eu com meu esforço de presença, margeando sua angústia, perscrutando seus vazios. E concluindo que minha menina, tão moça, já moça, sofre de ausência, ausência de si mesma. Se tento tocá-la, minhas mãos atravessam seu corpo inexistente: uma espécie de inconsistência. Ausentei-me também em algum momento, em algum lugar dessa geografia de terror? Perdi-me no labirinto em que ela mesma se perdera?

Ou deveria deixá-la ir, dentro de mim, levada pelas correntezas, esquecê-la e confiar porque “dentro do mar tem um rio” e lá há de saber navegar, beber de boa água, sentir-se em casa. Vou deixá-la ir apesar das sessões desmarcadas, da mágoa pelo fracasso. Ela deve ausentar-se dentro de mim?

Quando nos encontrávamos ao entardecer e seu nome tão singular era chamado – tinha cuidado para que algum sorriso meu não esbarrasse na dor do rosto envergonhado de tanto sofrimento, envergonhado de não se sentir normal. Quantas vezes eu chegava sorrindo – “como se fosse a primavera / e eu morrendo e eu morrendo… / Quem lhe disse que eu era / riso sempre e nunca pranto? Como se fosse a primavera / não sou tanto /” [11]. As palavras do compositor pareciam pertinentes ao silêncio dos lábios franzidos, saindo com o vigor de quem sofre e o outro chega derrubando. Era a minha vez de vergonha e eu a recebia desmanchada para num árduo trabalho juntar cacos. Cristal frágil demais: Juntar cacos.

Está tão cansada. Quer existência e um pouco de alegria. E eu ao largo, eu ao lado. Tão perto e tão distante:

Tu e eu vamos
No fundo do mar
Absortos e correntes e desfeitos.
Agora és transparente
À tona do teu rosto vêm peixes
E vens comigo
Morto, morto, morto
Morto em cada imagem

[Sophia de Mello Breyner]

Fonte: Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo peloDepartamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.

Autor: Fátima Regina Flórido Cesar de Alencastro Graça

One thought on “A cor da ausência

  1. Su says:

    Simplesmente demais esse texto!
    Pela primeira vez consegui me entender, entender o que se passa dentro de mim e sentir que não estou sozinha, que não sou anormal, que tem uma explicação para o que eu sinto e vivencio…
    Muito obrigada!

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